Em novembro de 2017, a jornalista Fernanda Câncio trouxe ao público, através de um artigo contundente no Diário de Notícias, uma reflexão sobre o caso de Ivanice Costa, uma brasileira de 36 anos, morta a tiro pela Polícia de Segurança Pública (PSP) em Lisboa. O texto, intitulado “Ivanice e as 40 balas”, expõe as inconsistências, omissões e contradições no relato oficial das autoridades, assim como a aparente apatia da sociedade perante um ato de violência letal praticado por agentes do Estado.
Na madrugada de 15 de novembro, Ivanice seguia no carro do seu companheiro quando a viatura foi alvo de 40 disparos por parte de sete agentes da PSP, 20 dos quais atingiram o veículo, causando a morte de Ivanice com um tiro no pescoço. A ação policial foi justificada pela suposta correspondência do carro às características de um veículo envolvido num assalto na Margem Sul. Alegou-se, ainda, que o condutor desobedeceu à ordem de paragem e tentou atropelar os agentes, o que teria motivado a reação com armas de fogo.
Fernanda Câncio destacou a rapidez com que o comunicado oficial da PSP validou a narrativa dos agentes envolvidos, justificando os disparos com base numa alegada tentativa de atropelamento. A jornalista desmonta a lógica apresentada, lembrando que, segundo a legislação portuguesa, o uso de armas de fogo só é legítimo em situações de legítima defesa quando há perigo iminente de morte ou lesão grave. Assim, disparar contra um veículo em fuga, especialmente após o alegado “perigo” ter passado, constitui, no mínimo, um uso excessivo da força.
A jornalista vai além da análise legal e toca numa questão profundamente moral e social: a normalização da violência policial, especialmente contra populações vulneráveis. Ivanice era mulher, brasileira, pobre, e a sua morte pareceu gerar mais resignação do que indignação. Para Câncio, é revelador que, enquanto casos como um jantar no Panteão Nacional provocaram enorme escândalo, o homicídio de uma mulher por ação policial não despertou um “alarme social”, como reconheceu à época a ministra da Justiça.
O artigo também trouxe à luz a recorrência de justificações baseadas em “tentativas de atropelamento” por parte de condutores em fuga, frequentemente aceites sem contestação judicial. Citando decisões de tribunais portugueses, Câncio lembra que a desobediência à ordem de paragem, por si só, não legitima disparos contra um veículo, muito menos quando o alegado perigo já foi ultrapassado. Contudo, a responsabilização de agentes envolvidos em mortes desse tipo continua a ser uma exceção, reforçando a ideia de que existe uma espécie de licença para matar.
A narrativa oficial do caso de Ivanice, assim como de outros semelhantes, é um retrato de como a justiça, o Estado e a sociedade muitas vezes tratam vidas que não têm “grande peso” social. Câncio encerra o seu texto com uma crítica amarga à complacência perante a morte de uma mulher pobre, que se tornou apenas mais um número nas estatísticas. Uma morte que, como ela bem pontuou, não gerou indignação suficiente para questionar os abusos de autoridade.
O caso de Ivanice Costa não foi apenas um incidente isolado. Ele levanta questões fundamentais sobre o uso da força policial, a transparência das instituições e a igualdade no tratamento da vida humana. Graças ao trabalho de jornalistas como Fernanda Câncio, a memória de Ivanice continua viva, servindo como um lembrete incômodo de que a justiça não pode ser seletiva e que o “alarme social” não deve depender de quem morre, mas das circunstâncias que cercam a morte.